[Conto] Dois mais Um


Doze eram os copos postos á mesa de mármore. Sentados em cada uma das doze cadeiras estavam os membros mais importantes daquela guilda desonesta.

"Não vai mudar de ideia, não é?" Pergunta um homem cuja armadura platinada reluzia mesmo sob o espesso teto de rocha e cobre.

"Não, e sua armadura é um dos motivos, Silvestre." Responde a mulher cuja pergunta fora adereçada, fazendo como todos os outros e fechando um pouco os olhos para encarar o paladino. "No fim das contas, essa ordem não tem mais como esconder-se da família imperial."

"Aquele convite..." A mirrada garota ao lado da mulher começa a perguntar, tão encolhida e tímida que era dificil discernir sua voz do burburinho matinal de um dia cheio como aquele. "Você aceitou?"



Todos viraram as faces para a mulher de cabelos verdes. Tal pergunta nascera da curiosidade mútua de todos que tinham ouvido falar do rumor da aventureira que finalmente tinha conseguido as graças do filho de um duque casca grossa.

"Aaah..." A mulher suspira e mostra a sua mão esquerda. No dedo anelar repousava um anel de prata simples e sem nenhuma pedra preciosa. O choque da revelação fora tão forte que até a armadura platinada de Silvestre parou de brilhar. "Acho que isso é prova suficiente, não?"

Todos queriam se virar e começar a cochichar dezenas de coisas, outros queriam gritar e dançar ou chorar o leite derramado. Ela sabia disso, pois eram quase uma família.

Quase.

"A oferta era melhor do que eu poderia pedir, e o garoto não parece tao terrível como os boatos diziam." Reforça a mulher. "Mesmo assim, continuarei como integrante da-"

Folhas de papel. A mulher se endireita na cadeira e tira o documento que grudara no rosto quando, sem se dar conta, usara como almofada por alguns momentos. Olha para o relógio na parede, pisca duas vezes ainda sem mudar de expressão e vira-se rapidamente para a janela: os "momentos" que acreditava terem se passado na verdade eram dezenas de minutos.

"Droga, como pude deixar isso acontecer!?" Grita a mulher, ajeitando a papelada em sua mesa e retomando o cansativo movimento de rúbrica só que acelerado ao maximo. "Se eu perder mais essa noite...!"

...

As ruas da cidade estavam apinhadas de curiosos e consumidores ávidos. O festival mais esperado do ano tinha finalmente chegado e vários entusiastas trataram de espalhar a palavra por várias partes do reino, principalmente na capital. Para quem olha de fora, Ashad era um reino governado com mão de ferro e extremamente xenofóbico para com o seu vizinho Selt, sentimento retribuído com todo o fervor pelos beastos que adoravam escravizar elfirans. A mulher de cabelos verdes fazia parte desta etnia, uma elfiran orgulhosa de sua perícia com a rapiera e magia natural que era capaz de manipular sem a necessidade de combustível mágico.

"Droga, droga, droga!"

Com passadas longas e uma precisão incrível, a mulher de cabelos verdes corria esquivando de todos que se prostavam em seu caminho; não era tão rápida quanto as lendas diziam, mas podia vencer uma corrida com folga. Trajava seu uniforme antigo por um pedido de certos conhecidos, e ela estava impressionada como o traje ainda lhe servia perfeitamente.

"Será que ele está colocando alguma coisa na minha comida...?" A mulher se pergunta, desviando de um garotinho com um salto impulsionado com um semi-chute semi-esmagada numa caixa de metal logo ao lado do dito cujo, rolando no chão alguns metros à frente dele e sendo aplaudida pelas testemunhas. "Droga, agora estou fazendo mais fãs..."

Não era exagero dizer que nossa 'heroína' tinha um impressionante número de fãs entre as pessoas daquela cidade e em outras, interessados tanto na habilidade incrível que esta tinha em desviar de todo o tipo de objeto mágico ou não como nas curvas generosas de seu jovem corpo, dignas de dar inveja em várias 'tias velhas' que encontrara em suas viagens. Muitas destas tinham se tornado suas inimigas.

"Aqui, Yuki!" Um homem acena ao lado da fonte de concreto e jade. Trajava um manto amarelo mostarda com capuz verde musgo, algo tão fora de lugar que até as outras pessoas na áre evitavam de ficar perto dele. O anel prata em seu dedo anelar combinava com a da mulher de nome Yuki.

"Desculpe a demora." Yuki diz, se curvando com as mãos apoiadas nos joelhos dobrados e o longo cabelo verde esparramado por sobre os ombros. Como estava cansada da corrida, Yuki olhava para o chão enquanto inspirava e expirava loucamente, se assustando um pouco quando sente a mão do homem em suas costas. "Não estou doente, não precisa me confortar desse jeito." Ria, endireitando-se.

"Deixe disso, não vou deixar minha musa dos seios de ouro desamparada deste jeito." Ria o rapaz antes de ter a boca tapada pela mão direita de Yuki.

"Já mandei você não me chamar disso fora de casa!" Vermelha, ela fecha a mão e bate com os dedos fechados no topo da cabeça do rapaz, o famoso 'cascudo'. "Droga! Quando é que você vai crescer, hein?!"

O rapaz apenas ria, um calor gentil se espalhando em seu coração.

"Ruric, seu pai já deve ter dito que mulheres não gostam de ser tratadas como vadias!", diz Yuki.

"Apenas entre quatro paredes, eu lembro." Ruric ri mais quando recebe mais pancadinhas e cascudos de Yuki, se defendendo preguiçosamente dos golpes de sua enrubescida noiva. Algumas solteiros que assistiam a cena começavam a desejar que Ruric morresse num incêndio.

De fato, o festival começava a ficar cada vez mais vivo com as atrações sortidas que surgiam e desapareciam com o piscar de olhos. Este era um festival anual que ocorria há quarenta e sete anos, Festival da Noite Vespertina. Inicialmente tratava-se de uma comemoração para a criatura mitológica regional que serpenteava pelos céus noturnos da cidade durante o solstício de inverno e buscava por objetos pequenos e interessantes, clamando-os como 'presentes'. Quando ouviu a história pela primeira vez Yuki resolveu apelidar a criatura de Noelis, causando um clima levemente pesado durante o jantar com o sogro.

"Talvez a gente consiga vê-lo hoje, Yuki." Diz Ruric, dando tapinhas amigáveis nas costas da mulher. "Só lembre de não chama-lo de 'Noelis' ou você vai confundir o pessoal..." Terminava com uma risada.

Por mais incisivas que suas observações parecessem Ruric não pretendia mal algum; familiares dizem que essa honestidade tem a ver com uma maldição do passado, porém Yuki nunca acreditou nisso. Yuki acreditava na força das pessoas e na vontade de mudar o mundo. Dali, o casal decidira visitar as barracas e passar o tempo juntos carinhosamente.

...

"Olhaê, volume novo na área!" Grita um homem numa banquinha, o balcão forrado com vários exemplares de sua mais recente 'obra-prima'. De certa forma, parecia um barraco de uma feira da sulanca, igual a todas as outras que também existiam naquela rua. "Tá barato, só treze dracma!" O avental branco por cima das vestes comuns davam a impressão de ser um cozinheiro ou padeiro completamente deslocado no espaço, pois seu produto eram pequenos encadernados de papel ruim com desenhos sequenciados a formar uma história fantasiosa. "Ah, e nossa musa apareceu bem na hora!"

De fato, Yuki permitia a comercialização e circulação desse tipo de literatura: doujins. Usadas comumente nos ranks militares para instruir soldados em determinados tipos de situações e a realizar abordagens específicas para evitar transtornos ou vazamento de informação, também terminaram caindo na graça popular quando certas histórias envolvendo contos infantis em versões mais 'adolescentes' e cheias de ação. Obviamente, histórias de cunho político e loucuras eróticas também encontraram público em círculos mais fechados da sociedade.

"Aventuras da Bela, Volume 7..." Yuki escaneava as capas iguais em busca de algo para reprovar, mas nada encontrava.

O misto de expressões advindos da fila pré-existente não aturdiam a mulher de forma alguma, mesmo esta sendo a principal personagem destas histórias. Ela olha para os garotos, e algumas garotas, e percebe que tinha mais algo ali.

"Autor querido, poderia me mostrar o produto verdadeiro?" Ela sorria, mas não com felicidade ou tristeza e sim com uma paz interior tão ameaçadora que até mesmo pequenos animais fugiriam sem nem pensar duas vezes caso encontrassem uma fera tão hostil. "O festival deste ano está bastante animado, e eu sei que você não iria negar um pedido tão cordial à minha pessoa, não é mesmo?"

"B-bom..." O homem passa a mão no cabelo oleoso, olha para a fila e concede. Ele se abaixa e pega uma caixa de madeira escondida embaixo do balcão. "N-não é nada de mais, do-dona, mas a garotada pede..."

Metade do conteúdo da caixa não existia mais, a outra metade fora trabalhada em papel de qualidade e com tintas diversas. Já a história era bem diferente da aventura juvenil que abundava no balcão.

"Hora Safada, estrelando Yuni Emeral..." A mulher franzia o cenho, intrigada com o título infeliz. A ilustração de capa mostrava uma mulher de corpo, face e roupas muito parecidas com a Yuki que ali estava, talvez um pouco mais cheia na região do busto e nádegas, sendo molestada por dois polvos com bicos de pato. Um distinto 'selo R-18' havia sido pintado na região inferior esquerda da capa. "O nome é uma porcaria mas o traço não parece tão ruim..."

De fato, permitir a veiculação de doujins com diversos conteúdos permitia à população um entretenimento rápido e limpo, diferente das arenas e rinhas ilegais em que seres inteligentes eram maltratados, humilhados e até mesmo mortos sem piedade em nome de um circo sangrento.

"Sim, acho que está de bom tamanho..." Silenciosamente, a mulher de cabelo verde lia a história rapidamente, Ruric ao seu lado apenas aguardando a resolução da 'neura' de sua amada. "Dou permissão para a venda destes títulos, mas espero não encontrar nenhum beasto nessas histórias, ok?"

"A-ah, sim, muito obrigado!" O homem se curva, suando, e agradece a administradora da cidade. Inclusive, ele tenta presentea-la com uma edição de cada gratuitamente mas Yuki decide comprar ambas pelo preço certo. "Muito obrigado pela preferência!"

Ela se despede e parte, deixando de ouvir o burburinho da fila que deixara para trás com um aceno de mão e um piscar de olho.

"Será que ela as u-usa?" Pergunta um tímido garoto.

"Tão grandes..." Realça uma garota loira, desprovida de...

"Talvez ela seja um anjo!" Diz um fantasiado, velho demais para caber no traje.

"Parece que os rumores estão certos." Constata um homem de aparência bruta, provavelmente um mercenário.

Se afastando mais da fila Yuki enfia as duas revistas numa sacola que Ruric carregava, já abarrotada com várias outras que a mulher tinha adquirido no festival. Impossível de se imaginar, mas todas tinham Yuki como personagem principal ou que passava mais tempo em foco, fosse ela completa ou uma versão alterada para evitar problemas. Subconscientemente ela gostava da atenção que recebia, conscientemente isso a assustava.

"Eu sinto como se tivesse um grande poder em mãos..." Ela olhava para a sacola com um semblante triste, temendo algo que não estava ali. "E se eu-"


"Lá vem você com isso outra vez!" Aquele era um dos poucos momentos em que Ruric perdia o sorriso bobo e ficava sério. O projeto de mago soltou a sacola e o urso no chão e se colocou a frente da mulher de cabelo verde encarando-a nos olhos. "Você não é uma pessoa fraca, não é alguém que qualquer um pode vir manipular e nem se deixa intimidar por algo que nem existe! Você é Yuki Emerald, a mulher mais forte deste mundo e a única pessoa que ilumina a minha vida!"


Ruric levantara o tom da voz nas últimas palavras, deixando Yuki vermelha como um tomate e os espectadores irritados como um grupo de são-paulinos que acabou de encontrar um grupo de palmeirenses.

"Se as coisas derem errado você pode tentar de novo! Você pode consertar ou seguir por outro caminho! Nunca, NUNCA, se deixe abater por algo que sequer aconteceu, ouviu?!" O rapaz termina dando um abraço na noiva, enterrando o rosto no cabelo bem tratado da espadachim; estava escondendo as lágrimas que vinham com as próprias ideias do que teria acontecido se nunca a tivesse encontrado.

Sem falar nada, Yuki retribui o abraço e consola o noivo passando a mão em suas costas. Por hora, estava satisfeita com o rumo que escolhera.

...

O sol mal tinha encontrado o seu lugar no céu do meio dia quando gritos de alerta ecoam pelas muralhas da cidade.

"Rápido, chamem ela! Tragam os harpões e botem na Norte 1 e 2!" Grita um soldado.

Arrumando-se enquanto corria, Yuki ouvia as ordens e seguia para o portão leste quando uma explosão numa casa próxima a pega de surpresa.

"Que dro-"

Ela não tem tempo para responder quando um imenso ogre surge de dentro da fumaça e se lança contra a espadachim, o tacape recém pintado com sangue de inocentes erguido e pronto para atingir seu alvo em cheio.

"Não vai ser hoje!" Yuki dá um curto salto para trás e chuta o chão com tamanha força que parecia ter sido arremessada por um gigante. Ela corre por sobre tacape e braço do ogre e desfere dois golpes rápidos contra a cabeça de seu alvo antes de saltar e pousar intacta a alguns metros de distância.

O dano causado por sua espada que mais lembrava um sabre não tinha sido o bastante para derrotar o monstro, muito menos para desviar sua atenção; o ogre estava de olho num grupo de crianças que tentava escapar pela rua e tinham todas paralisado de medo ao ver a criatura.

Se Yuki falhasse aquelas crianças seriam as primeiras vítimas dessa invasão. Ou mais vítimas, já que ela não tinha como saber quantos já tinham perecido para aqueles monstros imbecis.

O que ela deveria fazer?

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